quarta-feira, 27 de março de 2013

O que nos está a chegar do fim do mundo

A primeira vez que o Papa Francisco apareceu na janela do Vaticano disse à Praça de S. Pedro que os irmãos cardeais o tinham ido buscar ao fim do mundo.

E assim fica descodificado o título deste apontamento. O fim do mundo é a Argentina, país bonito, rico e extenso que tive oportunidade de visitar já por duas vezes. A ida ao limite sul do mundo, em Ushuaia, foi um momento inesquecível. E jamais esquecerei aquele passeio pelo glaciar Perito Moreno. E a ida ao santuário do tango, o Teatro Carlos Gardel, e à La Viruta… Enfim, e muitas outras coisas bonitas. Do fim do mundo veio algo que até agora é genericamente aceite como muito bom e que é a nova liderança da Igreja Católica.

E de lá também veio até à Europa a Presidente, Senhora Cristina Fernández de Kirchner. Veio para ver o Papa Francisco. Lá no fim do mundo as relações dela com o então cardeal Jorge Bergoglio não seriam, segundo li na imprensa, muito famosas. Mas ela veio fazer as pazes e introduziu algo de novo. Trocou beijos com o Papa. Isto pareceu-me muito bom porque é mais um condimento de humanidade no estatuto papal. Eu devo dizer que sinto simpatia pela Senhora Kirchner. Não pela sua vida política, mas porque ficou viúva tão cedo. É relativamente nova, pois nasceu em 19 de Fevereiro de 1953. No dia em que soube que o seu marido Néstor tinha sido vitimado por um ataque cardíaco, apoderou-se de mim um estranho sentimento de tristeza e solidariedade.

Um outro elemento bom, que pode ter passado despercebido para muita gente mas não para o Diário de Notícias de 20 de Março, é o facto de vir também do fim do mundo a próxima Rainha da Holanda, a princesa Máxima, que nasceu em Buenos Aires e que ascenderá ao trono holandês no próximo mês de Abril.

Para além destas coisas boas que vêm do fim do mundo, haverá muitas outras com certeza. Mas verdadeiramente aquilo de que eu quero falar aqui e hoje é de uma coisa má. Muito má mesmo. É a argentinização da banca europeia.

Por vicissitudes diversas, nomeadamente por erradas políticas do FMI, a banca argentina entrou em colapso total e sistemático há já vários anos e nunca mais se endireitou. Os argentinos não confiam nos bancos e só põem neles o dinheiro absolutamente essencial. O resto guardam-no em US dólares escondidos nos sítios mais impensáveis. Contou-me há dias uma amiga que uma certa pessoa sua conhecida vendeu a casa em que morava para se mudar para outra cidade. Às tantas lembrou-se de que tinha deixado esquecido no forro dessa casa um embrulho com um considerável pecúlio em dólares. Dirigiu-se humildemente ao novo dono da casa a quem explicou a situação. Gentilmente, ele ajudou-a a retirar o seu embrulho. Era um privado. Se fosse um banco, muito provavelmente o embrulho estaria definitivamente perdido.

O fenómeno do descrédito no sistema bancário está a chegar à Europa e em força. Podem dizer que esse mal não vem do fim do mundo mas a fonte é a mesma: o FMI.

Escrevia há dias Manuel Alegre que nesta Europa germanizada toma-se uma medida e destrói-se um país. Referia-se obviamente ao que estão a fazer a Chipre. Inicialmente queriam impor um imposto sobre todos os depósitos, se bem que, acima dos cem mil euros, esse imposto era bem mais gravoso. Ignorantes não sabiam que, graças aos esforços internacionais, quase todos os países têm aquilo a que se chama seguro dos depósitos e que garante os depósitos bancários até cem mil euros. Seria o descrédito total que o Estado viesse agora dizer que afinal aquilo que era dado por garantido já não o era. E isso ab initio ,desde o princípio. Então, ao aperceberem-se da sua ignorância, os senhores do Eurogrupo dispensaram o imposto sobre os depósitos abaixo dos cem mil euros, mas atiraram-se, com inaudita sanha, aos depósitos acima dos cem mil euros, que serão todos confiscados em trinta por cento.

Tenho um amigo advogado reformado que, durante a sua vida activa não cuidou devidamente de actualizar os descontos para a Caixa de Previdência. E foi confrontado com a realidade nua e crua. Quando o quis fazer já era tarde. E agora a sua reforma são umas escassas centenas de euros. Mas acrescentou que consegue viver porque sempre foi poupado e tem um pecúlio na Caixa, que lhe dá o complemento necessário para uma vida, com um mínimo de dignidade. Perguntei-lhe que tipo de aplicação tem e respondeu que é o depósito a prazo, pois é o mais seguro. Nada de acções, obrigações, fundos ou produtos alavancados. Só o depósito a prazo lhe oferece confiança. Se esse meu amigo fosse um cidadão cipriota, na segunda-feira passada teria acordado com menos trinta por cento desses depósitos. Ou seja, um depósito de duzentos mil, perderia trinta mil, pois os primeiros cem estão garantidos pelo seguro de depósitos. E se tiver trezentos mil teria visto voar, numa só noite, sessenta mil, e assim por diante.

O efeito dominó pode vir aí.

O Presidente do Eurogrupo, Sr. Jeroen Dijsselbloem descaiu-se em declarações dizendo que a receita cipriota poderia ser aplicada a outros países europeus. Quais, não disse. Mas logo pensamos nos que estão na berlinda: Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha. Face às fortes recriminações públicas ele veio dizer, no dia seguinte, num comunicado de quatro linhas, que, afinal, o caso de Chipre é específico. Se ele sabia isso por que é que ameaçou com a aplicação da receita cipriota a outros países. Afinal ele é o Presidente do Eurogrupo. E esta é uma das posições onde um simples espirro pode dar origem à gripagem de todo o sistema económico.

Esse senhor merece todos os nomes. Para mim ele é um irresponsável desbocado, que lançou a chama à mecha Troika (FMI/BCE/EU) para a argentinização da banca europeia.

E só mais uma nota. Uma boa parte dos depósitos nos bancos de Chipre são de empresas e cidadãos russos. Em Londres apareceu morto, há dias, um bilionário russo, Boris Bereszovsky, em circunstâncias misteriosas. Suspeito que vamos ter aqui condimento para um excelente argumento de uma novela policial, com lavagem de dinheiro e muito poder político à mistura. Eventualmente envolvendo o sistema bancário cipriota.

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