quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Passagem de ano em Cabo Verde – 22. O dia-a-dia no Campo de Trabalho de Chão Bom

Já nos interrogámos várias vezes como seria a vida dos reclusos no dia-a-dia do Campo de Trabalho de Chão Bom. Sabemos que há escritos sobre este assunto, quer da autoria de ex-reclusos, quer de outras pessoas, nomeadamente jornalistas. Disseram-me que a jornalista Diana Andringa tem um interessante trabalho publicado sobre este tema. E também Edmundo Pedro, que esteve lá detido. Esperamos poder encontrá-los.

Por agora, limitámo-nos a reflectir apenas sobre aquilo que vimos e sentimos no campo, nomeadamente a partir da informação exposta.

O decreto que criou o campo previa a existência de um capelão. No entanto, não vimos qualquer referência à religião ou a práticas religiosas nem locais afectos ao culto.

Embora, conforme referimos num apontamento anterior, o campo tenha sido construído para um máximo de quinhentos presos, não conseguimos ver qualquer informação que fale em excessos de lotação.

Nas fotografias abaixo, estão listados todos os reclusos que passaram pelo Chão Bom. Os nomes são perfeitamente legíveis depois de clicarmos duas vezes sobre cada fotografia para ela aumentar.



Estes cartazes estão agora fixados no pavilhão dos detidos guineenses. Como vemos, o grupo mais numeroso é o dos portugueses. No entanto não vimos no campo qualquer referência ao lugar onde possam ter estado detidos.


Atendendo ao número total de presos e apesar do longo período em que o campo funcionou, parece que nunca se colocou o problema da sobrelotação.

Um dos documentos que achámos mais interessante é o horário da vida prisional a que estavam sujeitos os reclusos angolanos e os guineenses. Não conseguimos saber qual era o aplicável aos portugueses e aos cabo-verdianos.


De acordo com esse horário, os reclusos passavam, por dia, cerca de dezoito horas e trinta minutos encerrados nas casernas. Tinham quarenta e cinco minutos para irem ao pequeno-almoço. Uma hora e quinze minutos para o almoço e igual tempo para o jantar. Proporcionavam-lhes uma liberdade fora da caserna de duas horas e quarenta e cinco minutos para recreio. Lavavam a sua própria roupa e tomavam banho às quintas e domingos na parte da manhã.

Dispunham de uma sala de leitura, mas não sabemos em que condições a podiam utilizar.


Edifício da sala de leitura.

Como a água doce em Cabo Verde é um bem escasso, e muito mais o era no tempo do funcionamento do campo porque, então, não havia máquinas dessalinizadoras, podemos adivinhar que o acesso a ela era muito condicionado e controlado, provavelmente com prejuízo dos mínimos de higiene.

Por outro lado, o excessivo tempo em reclusão provoca alterações nos nervos de qualquer ser humano nem que a reclusão dure só por um dia. Por isso podemos adivinhar que havia uma tensão permanente com condições para explodir, por tudo e por nada, pondo à prova os guardas prisionais.

Havia um posto de socorros com médico avençado.



Recluso em frente da porta do posto médico.

No entanto não deixa de ser estranho que esses médicos não tenham conseguido evitar a morte de gente relativamente jovem. Dos trinta e seis mortos listados, sete tinham menos de trinta anos, quinze estavam na casa dos trinta quarenta, nove na casa dos quarenta cinquenta quatro na casa dos cinquenta sessenta e apenas um com mais de sessenta anos.

As portas das duas alas do campo estão em frente uma da outra.

Os reclusos eram chamados para participar em trabalhos, havendo em contrapartida o pagamento de um salário por parte do campo, que ficava guardado num fundo para poder ser levantado pelo recluso quando chegasse a hora da sua liberdade. Por vezes os reclusos tentavam levantá-lo no todo ou em parte alegando para isso as mais diversas razões. Por exemplo, no apontamento anterior está reproduzido um documento em que um recluso pedia para levantar parte do seu dinheiro alegando que era para comprar material didáctico. E isso foi-lhe negado porque o requerente mal sabia ler e o que ele referiu que queria comprar eram os Lusíadas a par de outras obras literárias.

O sistema prisional, já rígido por si, exigia uma maior dureza em casos de violação da disciplina. Nas violações mais graves, os reclusos eram fechados na Holandinha, uma minúscula cela onde mal se podiam pôr de pé e apenas com cerca de um metro quadrado, o que os impedia de se deitarem. Tinha apenas uma minúscula janela gradeada que dava para o interior de outra cela já por si bastante pequena. Esse castigo era acompanhado de mais privações, como sejam cortes na alimentação e acesso a água potável. Há um cartaz onde um ex-recluso relata que ele e os companheiros tiravam um pouco das suas refeições que reuniam e faziam chegar clandestinamente a um seu companheiro fechado na Holandinha.


Há um outro relato de um ex-recluso que se queixa de que, durante todo o tempo em que lá esteve detido, foi mantido completamente isolado da sua família, pois toda a correspondência, dele e da família, foi interceptada e apreendida pela pide.

A maioria dos reclusos tinha estatura intelectual e moral superior e, talvez por isso, mantinham com a direcção e com pessoal do campo uma relação cordata, como a melhor solução para suportarem as agruras daquela situação e poderem sonhar com a sua saída daquele inferno.


Há uma fotografia exposta de um grupo de reclusos, datada de 1946, onde o então director do campo, David Prates da Silva, posa no meio dos reclusos, nada indiciando que ele esteja ali contrariado. No conjunto mais parece a fotografia de um grupo de colegas e amigos do que do director de um campo de concentração com os respectivos reclusos.

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