terça-feira, 23 de março de 2010

AS PEGADAS JURÁSSICAS E A AVÓ CAROLINA

Na postagem anterior, deixei registada a minha admiração pelas pegadas jurássicas da Serra de Aire, que visitei no passado sábado, dia 20 de Março. Impressionaram-me pela perfeição da sua preservação na rocha de calcário e por um período tão longo que a nossa capacidade de viajar no tempo não consegue alcançar.
Na viagem de regresso desse passeio, vinha no autocarro ocupado mentalmente em encontrar uma medida que me permitisse compreender o que são 175 milhões de anos. Comecei por avaliar o período da minha existência, tentando chegar às recordações mais antigas de que sou capaz de me lembrar. E, com esse exercício, cheguei até a cerca de 1945. Depois recordei alguns testemunhos que me passaram os meus pais e conterrâneos sobre as primeiras décadas do século XX, como sejam a implantação da República, a Primeira Grande Guerra, a peste pneumónica, as primeiras notícias das aparições de Fátima e a Guerra Civil de Espanha. Assim, consegui chegar até 1900. Lembrei-me também de uma tia da minha Mãe, a Ti Rosa, que morreu com 103 anos por volta de 1960. Já perto dos cem anos, mantinha uma memória prodigiosa e uma vontade de contar as histórias da sua vivência e outras que recebeu do testemunho dos seus pais. Por exemplo, eram interessantes as histórias que ouvira dos seus pais em relação às invasões francesas, quando os invasores passaram na minha aldeia. Referia os locais onde se alojaram, a reacção do povo, e o que exigiram. E assim, socorrendo-me de testemunhos directos e indirectos, consegui chegar ao começo de século XIX. Mas, na linha do tempo, estes dois últimos séculos já correspondem a um período demasiado longo. Para ir mais para trás, só com o recurso aos livros de história ou ao que nos documentam os monumentos existentes. Por exemplo, o Castelo de Ourém, que também visitámos nesse passeio, tem mil anos, e isto é já um período demasiado extenso para caber na nossa capacidade de medir o tempo. Com esforço, conseguimos ir até ao nascimento de Cristo. Para lá de dois mil anos, todo o tempo é igual e tanto dá falar em dois mil como em 175 milhões de anos. Está tudo numa mancha nebulosa fora do alcance da nossa capacidade de sentir.
Vinha eu entretido no autocarro com estas divagações, embebido na admiração pelas pegadas dos dinossáurios e pela sua preservação durante 175 milhões de anos, quando chegou pelo telefone a notícia de que a Avó Carolina, a bisavó das minhas Netas, tinha acabado de falecer.

Numa das postagens deste blogue deixei um registo sobre o grande Senhor que foi o seu marido. E não podia deixar de registar também minha impressão sobre esta grande Senhora.


Maria Carolina Monteverde Plantier Martins Saraiva
(08-05-1923  @  20-03-2010)  

Que Dama nobre que foi a Avó Carolina. Tinha orgulho em dizer que sempre teve a profissão de dona de casa. Andou por Benguela e Lobito com a família. Superou perigos, dificuldades e provações. Transmitia experiência, sabedoria e serenidade. Eu sentia uma paz imensa quando falava com ela. Impressionava-me com a sua pose de grande Dama e com as palavras pausadas, em frases curtas, de grande sabedoria. Deu ao mundo, criou e educou, na sua profissão exclusiva, doze filhos de que muito se orgulhava. Eles serão, em sua memória, como que doze bem definidas pegadas jurássicas que irão desafiar o tempo e se irão multiplicar em gerações, para além de 175 milhões de anos.

Que grande Bisavó tiveram as minhas Netas!!! Hoje, 23 de Março de 2010, é o dia em que dizemos o último adeus à Avó Carolina. Um Adeus sentido por vós, ainda pequeninas, pelos vossos pais e pelos vossos avós! Lembrá-la-emos para sempre!

segunda-feira, 22 de março de 2010

DINOSSÁURIOS E OURÉM

No sábado, 20 de Março, fomos visitar as pegadas dos dinossáurios da Serra de Aire. Já tinha ouvido falar delas, mas sentia curiosidade em ir vê-las pessoalmente. Assumo, como princípio, que não há relatos nem imagens que nos consigam transmitir, na plenitude, o meio ambiente em que as coisas acontecem.
Após a explicação que nos foi dada por uma das guias do Parque, aqueles sulcos na rocha, que se estendiam à nossa vista em linhas paralelas, começaram a fazer sentido e a impressionar-nos. Não resisti à tentação de pôr o meu pé num desses sulcos onde, há cerca de 175 milhões de anos, um dos maiores seres que já povoaram a terra pôs a sua patorra.

Olhando na perspectiva de um dos vinte trilhos existentes na enorme laje do Parque, dei por mim a imaginar um enorme animal quadrúpede, de trinta metros de comprimento e oito de altura, com um corpo de setenta toneladas, a fazer esse trilho de cerca de cem metros, no que terá demorado mais ou menos dois minutos. Que importante foi esse pequeno período de tempo em que se escreveu um tão valioso documento ainda visível cento e setenta e cinco milhões de anos depois.

Fez também parte do nosso passeio uma visita ao castelo e à cidade velha de Ourém. No alto da colina, esse castelo medieval do século XII proporciona uma impressionante vista panorâmica. Ouvi contar a sua história e algumas das lendas que o rodeiam. Para ser franco, as pedras pareceram-me ainda mais velhas do que as das pegadas dos dinossáurios. E, no entanto, estão ali encasteladas há apenas novecentos anos.
É curioso notar que o brasão do quarto Conde de Ourém, D. Afonso, visível em vários locais do castelo, se encontra encimado por uma orgulhosa águia de asas abertas. Mas, por outro lado, dá-nos pena ver que as águias de todos os brasões que encontrámos foram decapitadas. Nem a do túmulo do Conde, que por ser bastardo, tem o escudo do brasão torto, foi poupada.



Dizem que os carrascos foram os invasores franceses que consideravam que, sendo a águia o símbolo imperial de Napoleão, a mesma não podia ser usada como emblema por mais ninguém.

Assim sendo e usando a lógica silogística, podemos concluir que:

– D. Afonso, o quarto conde de Ourém, um homem do século XV, teve uma excelente visão futurista, ao escolher o símbolo que muito mais tarde viria a ser adoptado pelo melhor clube de futebol português no ano de 2010;

– Se Napoleão ainda governasse e invadisse Portugal todos os benfiquistas assumidos teriam de fugir ou, no mínimo, esconder-se, pois teriam a cabeça a prémio.

domingo, 14 de março de 2010

EM TREZE DE MARÇO, OS SINAIS DA PRIMAVERA

O Inverno tem sido rigoroso. Na Capinha, a minha aldeia, caíram três nevões, sendo que o maior foi no dia dez de Janeiro. Tem chovido copiosamente e feito muito frio.
Mas hoje foi um dia de sol, que encheu de júbilo a natureza e nos convidou a sair para o campo para vermos os sinais da natureza a despertar.
(As flores amarelas dos nabais)

Os ramos dos carvalhos explodem em rebentos arrocheados. As mimosas apresentam-se, aqui e ali na paisagem, em manchas amareladas. As árvores que irão dar a fruta de caroço expandem os seus ramos cobertos de flores rosadas. Os prados vestem-se com os lençóis brancos das flores da margaça e, aqui e ali, com as cobertas das flores amarelas dos nabais.
Contudo, esta tarde, para além destas manifestações normais do acordar da natureza, tivemos a oportunidade de ver um inusitado sinal da Primavera.

(Os lençóis brancos da flor da margaça)

À saída da Capinha, na estrada para Penamacor, há, junto à curva mais próxima da placa toponímica, no lado esquerdo, um palheiro com paredes de xisto que nós conhecemos por Palheiro dos Leais. Pois, ao começo da tarde, quando íamos passar no local de carro, vimos levantar-se do telhado desse palheiro uma enorme ave, talvez uma águia real, que seguiu baixinha, à nossa frente, sobre a estrada, durante alguns segundos, segurando nas garras das patas uma cobra, bem compridita mas miudinha, que se remexia em ziguezague. Vimos claramente que era agarrada a uns dez centímetros da cabeça, retorcendo desesperadamente o resto do corpo. Passados alguns segundos, a portentosa ave dirigiu o seu voo para a direita, mergulhando no campo visual, seguramente para saborear em sossego a sua presa, que o sol da Primavera tirara do sono da hibernação. Esta cobra estendeu-se nas telhas do palheiro para se aquecer, mas foi surpreendida pela investida inesperada da águia, cuja vista, de muito longo alcance, facilmente a detectou.

sábado, 13 de março de 2010

A CAPINHA NA ROTA DA TRANSUMÂNCIA DA SERRA DA ESTRELA

"Novembro avançava e, com ele, o frio, cada vez mais forte. Já caíra neve na Torre e nas Penhas e as ervagens de Manteigas estavam esgotadas. Era a época em que, anualmente, se iniciava a transumância, levando-se o gado para longínquas campinas, onde a invernia se fizesse sentir menos. O primeiro rebanho a abalar, para a viagem de cinco, seis dias, que tanto exigia a caminhada dali até Idanha , fora o do Canholas, com ovelhas de mais quatro pastores. Outros partiram depois e, por fim, o do Valadares, o do velho Jerónimo Latoeiro, o do Aniceto e o da tia Luciana largaram também, num só grupo, para poupar condutores. Eram quase trezentas ovelhas, brancas e negras, mosaico que cobria toda a largueza da estrada, a caminho da terra baixa. À frente e aos lados, mantinham guarda o Lanzudo e outros cães, menos o Piloto que fora considerado débil para a longa jornada. Atrás marchavam o Horácio, o Tónio, o Aniceto, o Libânio, filho do tio Jerónimo, e um burro por cada homem. Os onagros transportavam bardos e ferradas; e os seus alforges, com alimentos no fundo, guardavam espaço para a recolha de cordeiros que dessem em nascer, como sempre acontecia, durante o trânsito. As ovelhas ora marchavam lestas e muito juntas ao seu passo curto, se gritos ou pedradas a isso as impeliam; ora abriam clareiras no rebanho e cortavam à esquerda e à direita, à cata de pasto vizinho da estrada. Às vezes, os seus focinhos orientavam-se para folhagem que tinha dono sempre pronto a barafustar contra as ladras; e, por mor dessas queixas, e até de multas policiais, outras pedras e outros berros caíam sobre as famintas, que retomavam o caminho, na esperança de serem, além, mais felizes. Por Belmonte, Caria e Capinha, elas iam seguindo o seu destino, dormindo onde a noite tombava, longe dos povoados, que nas redondezas destes a cama era-lhes proibida, e levantando-se mal clareava o céu, para continuarem a marcha, sempre com os burros à cauda e, atrás dos burros, os homens. E brancas e negras, sem outro ruído que o marulho dos seus passos, e rebeldes somente quando alguma folhita verde, tão humilde como elas, se debruçava na estrada, a desafiar-lhes o apetite, as ovelhas acumulavam gratidão no espírito de Horácio e de seus parceiro por nenhuma haver ainda parido. Ao terceiro dia, porém, a Farrusca, que pertencia ao Aniceto e exibia barriga redonda que nem pipa, deu em balir...
(Texto da obra a “A Lã e a Neve” de Ferreira de Castro, Edição do Círculo de Leitores, páginas 92 e 93)

NOTA:
Por esta altura, no começo de Março, os rebanhos faziam o percurso inverso, deixando as campinas da Indanha, passando novamente pela Capinha, e regressando ao seus pastos tradicionais nas encostas mais altas da Serra da Estrela.

domingo, 7 de março de 2010

TROPEÇAR NOS EFEITOS DA CRISE

Esta noite decidimos que íamos ao Monumental ver o filme “ Uma Outra Educação”, ou, no nome original “An Education”, do Lone Scherfig. Conta uma história simples em que, a nós pais, nos deixa a pensar no papel pateta que, sem querer, por vezes desempenhamos, mesmo quando queremos sempre o melhor para os nossos filhos.
Uma colegial brilhante (Carey Mulligan) é desviada do seu percurso por um cavalheiro bem falante (Peter Sarsgaard) que a deslumbra com a possibilidade de uma vida fácil. Até o pai dela, sempre autoritário, se deixa ir no engodo. Mas enganaram-se. O senhor era casado e pai de filhos. E era useiro em fazer dessas coisas. A moça conseguiu recuperar do engano e retomar o seu caminho com determinação, tirando bom proveito da lição.
Mas não é só sobre o filme que quero deixar hoje um registo.
É mais sobre os efeitos da crise.
Eram quase dez da noite. Estava frio e caía uma chuva miudinha. Já perto do edifício Monumental, abrigado no toldo exterior de um restaurante, que estava fechado, encontrava-se um grupo de cerca de doze homens. Alguns estavam sentados em cartões e encostados à parede. Outros estavam de pé a falar em grupo. De repente, parou no local uma carrinha branca da Legião da Boa Vontade. Todos eles se levantaram e dirigiram para a carrinha. Duas senhoras saíram dela, abriram a porta traseira e começaram a distribuir a cada um uma embalagem que me pareceu conter sopa quente e mais qualquer coisa.
Estes homens não tinham ar de maltrapilhos. Todos estavam com roupas asseadas. Ouvi o último que se levantou do chão a olhar para o cartão onde estava sentado e dizer: “Por mim ficava já aqui”. Alguns eram novos e tinham até jeito de ser estudantes. Ao entrar no edifício do cinema olhei para trás e verifiquei que os homens já se encontravam novamente no passeio com as embalagens na mão. A carrinha já estava em movimento, provavelmente para ir ao encontro de mais grupos de pessoas atingidas pelos os efeitos duros da crise.

Fiquei com simpatia por estas senhoras da Legião da Boa Vontade.